Investigações sobre os crimes ocultam o feminicídio da artista circense, alerta o especialista Jesem Orellana, da Fiocruz. Amigos fazem memória das homenagens pelas cidades brasileiras (Foto: Mídia Ninja)
Manaus (AM) – O feminicídio da artista circense Julieta Inés Hernández Martínez, a palhaça “Miss Jujuba”, completa um mês nesta terça-feira (23). As homenagens póstumas continuam sendo realizadas em várias regiões do Brasil e os coletivos Pé Vermei e Mulheres Cicloviajantes, dos quais ela fazia parte, estão juntando todos os registros das manifestações e homenagens à ciclista para construir uma memória que conte sua história no país. A capital do Amazonas foi a última cidade em que a artista fez uma apresentação, realizada no dia 10 de dezembro de 2023, durante o “Cabaré de Dia dos Palhaces”, evento promovido pelo Centro Cultural Barravento, localizado na zona sul de Manaus.
Na capital amazonense, Julieta ficou hospedada na casa de uma compatriota venezuelana, a também artista circense Teffy Rojas. Em entrevista à Amazônia Real, ela se diz indignada e incomodada por Julieta ter vivido seus últimos momentos de vida de forma cruel, e pede justiça. “Queremos que haja justiça e que façam pagar realmente os criminosos que cometeram as atrocidades contra a Julieta. A luta de mulheres como Julieta continua pelas mulheres que ainda estão com vida nessa sociedade tão egoísta, machista e às vezes até cruel, na que transitamos”, afirma.
Mesmo afirmando que não conviveu por tanto tempo com ela, Teffy Rojas faz questão de pontuar que a sua admiração por Julieta é “imensa e infinita, pelo fato de ser uma mulher que lutou contra esse sistema de distinção de classes sociais com a melhor arma: a arte nas comunidades mais vulneráveis”.
Há duas semanas, o Centro Cultural Barravento divulgou uma nota póstuma. “Julieta nos presenteou e compartilhou sua experiência em rir com a vida e com o público. Alguns dias depois seguiu seu trajeto de retorno para casa [na Venezuela], tragicamente interrompido. Sabemos que agora é importante cuidar de quem fica e saudar a memória dessa artista que deixa experiências únicas com cada pessoa que ela cruzou o caminho. Força a família e a rede que se mobilizou de forma tão gigante. Para Julieta, nossa gratidão e desejo que a sua trajetória seja lembrada pelos risos que espalhou”, diz a nota.
Os coletivos Pé Vermei e Mulheres Cicloviajantes divulgaram uma nota nesta segunda-feira (22), pedindo apoio para fazer a memória da artista. “Precisamos nesse momento reunir todos os registros possíveis de Julieta, tais como: fotos, vídeos, histórias. Pedimos que nos enviem no e-mail julietaestaaqui@gmail.com (…) Também precisamos reunir os registros das centenas de homenagens para Julieta que têm acontecido. Todo esse material será importante para a continuação das lutas de Julieta e para a proteção de sua história tão importante. A gestão desses materiais será feita com acompanhamento de @sophialarouge, irmã de Julieta. Nos ajude a reunir todo esse material, compartilhe, envie essa informação para as pessoas das comunidades onde Ju passou”.
Nas redes sociais, onde contava o dia a dia de suas viagens de bicicleta, Julieta Hernández se despediu de Manaus no dia 16 de dezembro. Ela agradeceu o acolhimento dos amigos, mas não citou o seu destino final, que seria a cidade de Presidente Figueiredo; uma viagem de 125 quilômetros pela rodovia BR 174. De lá, seu objetivo era cruzar a fronteira de Roraima com a Venezuela para chegar em sua cidade natal, Puerto Ordaz, um percurso total de 1,3 mil quilômetros.
Em Presidente Figueiredo, segundo a Polícia Civil, Julieta se hospedou no Espaço Cultural Mestre Gato, no dia 21 de dezembro. O local é de apoio a viajantes da rodovia BR-174 e fica a 15 minutos a pé do centro da cidade. Na madrugada do dia 23 de dezembro de 2023, a artista desapareceu. Um Boletim de Ocorrência foi registrado no dia 4 de janeiro. No dia seguinte, o casal Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos, pais de cinco crianças, confessou a autoria do assassinato da artista. O corpo de Julieta foi encontrado no dia 6 de janeiro no terreno do Espaço Cultural. O casal está preso preventivamente sob a acusação de crimes de latrocínio – roubo seguido de morte-, roubo e ocultação de cadáver contra Julieta.
Fundadora da Rede Venezuelana de Palhaças, Julieta Hernández estudou no Centro de Teatro do Oprimido (CTO) e na Escola Livre de Palhaços (ESLIPA) no Rio de Janeiro. Foi uma das incentivadoras da criação do Grupo Magdas Migram e do coletivo Pé Vermei. Após sua morte, artistas circenses, ciclistas, feministas e o movimento social, realizaram manifestações em cidades do Brasil e do exterior, cobrando Justiça por Julieta, e denunciaram a violência contra as mulheres. O sepultamento do corpo da artista foi no dia 12 de janeiro em Puerto Ordaz, na Venezuela.
Ocultação do feminicídio
À Amazônia Real o delegado Valdinei Silva, titular da 37ª Delegacia Interativa de Polícia (DIP) de Presidente Figueiredo, informou que o laudo da necropsia realizada pelo Instituto Médico Legal (IML) apontou que Julieta sofreu queimaduras de 2° e 3° graus em quase 30% do corpo. “Tinham queimaduras na face, couro cabeludo, pescoço, ombros e tronco. O laudo concluiu também que a morte dela ocorreu por asfixia em consequência de estrangulamento”, afirmou o delegado.
Segundo o delegado Silva, não houve a quebra de sigilo do telefone celular da artista, que foi roubado pelo casal, mas recuperado pelos policiais. “O aparelho foi entregue à família de Julieta. O inquérito do caso foi concluído parcialmente, mas com o exame necroscópico será feito um relatório final complementar, para ser enviado à Justiça”, disse o policial, que não tipificou o crime de feminicídio na investigação.
A Defensoria Pública do Estado diz que a competência sobre a tipificação do feminicídio “é exclusiva do delegado de polícia, na oportunidade do indiciamento, e do Ministério Público, quando do oferecimento da denúncia”.
Segundo o cientista da Fiocruz Amazônia, Jesem Orellana, embora seja muito provável que haja uma penalização pesada para os agressores de Julieta Hernández, o fato de as autoridades não declararem em inquérito o enquadramento do casal pelo crime de feminicídio, acaba ocultando a violência de gênero que Julieta sofreu.
“Se você parar para pensar por exemplo no caso de um homem, dificilmente ele vai sofrer violência sexual da vitimização letal. Então, isso acontece exclusivamente com mulheres, acontece pela condição de ser mulher e isso é considerado violência de gênero”, afirmou.
O pesquisador argumenta ainda que não falar sobre a violência de gênero praticada contra Julieta no cotidiano, na imprensa e no judiciário, significa repetir o que a humanidade faz há milênios, que é a ocultação desse tipo de crime. “Essa seria uma estratégia não só de trazer à tona a violência de gênero, como também pensar em situações que possam criar uma consciência coletiva para aumentar, inclusive, a pena desse tipo de crime que envolve violência de gênero”, declarou Orellana à Amazônia Real.
A decretação das prisões preventivas do casal Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos SantosThiago e Deliomara – ambos acusados pelo assassinato de Julieta Hernández -, foi por crimes de: latrocínio (roubo seguido de morte), com pena prevista é de 20 a 30 anos de reclusão e multa; estupro, com pena de prisão de 6 a 10 anos; e ocultação de cadáver, que prevê reclusão de um a três anos e multa.
Conforme especialistas no tema, o assassinato de uma mulher também é considerado feminicídio mesmo quando cometido por pessoas desconhecidas da vítima. Um exemplo é um caso de estupro com morte, quando o autor não conhece a vítima. O feminicídio é o ato de matar uma mulher por razões que envolvam a violência doméstica e familiar, o menosprezo ou a discriminação à condição feminina. A penalidade é mais alta e sem multa por ser crime hediondo: reclusão sobe de 12 para 20 anos, com o máximo de 30 anos em regime fechado.
Violência de gênero dispara no Brasil
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que no primeiro semestre de 2023, 722 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, um crescimento de 2,6% comparado com o ano anterior, quando 704 mulheres foram assassinadas. Neste período foram 34.428 casos de estupro e estupro de vulnerável de meninas e mulheres, um aumento de 16,3% em relação a 2022, que registrou 29.601.
O estudo “Cartografias da Violência na Amazônia”, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgado em novembro de 2023, alertou sobre a violência de gênero na região. As taxas de feminicídio, assassinatos de mulheres e estupros na Amazônia Legal são mais de 30% superiores à média nacional.
Em 2022, a taxa de feminicídios nos municípios dos nove estados que compõem a região, foi de 1,8 para cada 100 mil mulheres, 30,8% superior à média nacional, que foi de 1,4 por 100 mil.
A taxa de estupros na região foi de 49,4 vítimas para cada 100 mil pessoas em 2022, 33,8% também superior à média nacional, que foi de 36,9 por 100 mil no mesmo período.
Considerando todos os assassinatos de mulheres, ou seja, não apenas aqueles classificados como feminicídios, mas também os homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, a situação é ainda mais grave.
A taxa de mortes violentas intencionais de mulheres na Amazônia foi de 5,2 por 100 mil mulheres, 34% superior à média nacional, de 3,9 por 100 mil. O estado de Rondônia apresentou a maior taxa de feminicídio, de 3 mortes por 100 mil, seguido do Acre com taxa de 2,7 e Mato Grosso com taxa de 2,6.
Apenas Roraima (0,9), Amazonas (1,1) e Pará (1,2) registraram taxas de feminicídio inferiores à média nacional. Mas, segundo o levantamento, a informação pode estar prejudicada pela baixa notificação de feminicídios nestes estados. Do total de mortes violentas de mulheres, é provável que um percentual baixo foi corretamente classificado por motivação de questões de gênero ou violência doméstica. Segundo a estatística da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, 22 mulheres foram vítimas de feminicídio no estado, de janeiro a novembro de 2023.
Para garantir a defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, a agência de jornalismo independente e investigativa Amazônia Real não recebe recursos públicos, não recebe recursos de pessoas físicas ou jurídicas envolvidas com crime ambiental, trabalho escravo, violação dos direitos humanos e violência contra a mulher. É uma questão de coerência. Por isso, é muito importante as doações das leitoras e dos leitores para produzirmos mais reportagens exclusivas sobre a realidade da Amazônia. Agradecemos o apoio de todas e todos. Doe aqui.
Republique nossos conteúdos: Os textos, fotografias e vídeos produzidos pela equipe da agência Amazônia Real estão licenciados com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional e podem ser republicados na mídia: jornais impressos, revistas, sites, blogs, livros didáticos e de literatura; com o crédito do autor e da agência Amazônia Real. Fotografias cedidas ou produzidas por outros veículos e organizações não atendem a essa licença.
O post Um mês sem Julieta apareceu primeiro em Amazônia Real.
- MPF denuncia acusados por crimes ambientais em Boca do Acre - 14 de outubro de 2024
- Boletim: desde junho, Amazonas soma mais de 20,8 mil incêndios - 14 de outubro de 2024
- INDT promove webinar sobre Realidade Estendida - 14 de outubro de 2024