A advogada Martha Gonzalez pretende recorrer ao Tribunal Internacional Penal caso os réus sejam inocentados pela Justiça do Amazonas. O principal acusado é o ex-namorado, o sargento Elson dos Santos Brito. Na foto acima, cartazes com fotos de Deusiane em frente ao Fórum Henoch Reis, em junho de 2022 (Foto: Raphael Alves/TJAM).
Manaus (AM) – No Amazonas, o feminicídio de Deusiane da Silva Pinheiro é um caso emblemático de impunidade quando a violência é contra a mulher. Em 1° de abril de 2015, a soldado foi assassinada com um tiro na cabeça nas dependências do local onde trabalhava, a Companhia Fluvial do Batalhão Ambiental, no bairro Tarumã, zona oeste de Manaus. O ex-namorado e colega de trabalho, sargento Elson dos Santos Brito, é o principal acusado do crime.
À época, o sargento Elson disse em depoimento na Delegacia de Homicídios que Deusiane havia se suicidado e colegas militares confirmaram a sua versão. O réu chegou a ser investigado por crime de feminicídio, mas durante a apuração o caso ficou tipificado como homicídio qualificado entre militares.
Antônia Assunção da Silva, mãe de Deusiane, acusou Elson pela morte da filha. Em entrevista à reportagem da Amazônia Real em maio de 2022, ela contou que a filha tinha um relacionamento com o sargento, mas que decidiu romper quando descobriu que ele estava envolvido em casos de corrupção dentro do Batalhão. Segundo ela, a atitude teria despertado a ira de Elson.
A mãe da militar se revolta diante da morosidade no julgamento do crime, que em 2024 completará nove anos, e aponta descaso do Tribunal de Justiça do Estado. “Se eu fosse conhecida na sociedade, tenho certeza que a justiça tinha chegado, mas como eu não sou conhecida na sociedade e nem sou rica, a Justiça faz um descaso comigo. Eu vejo essa demora como descaso, a Justiça é seletiva e serve para uma minoria de pessoas privilegiadas. A Justiça no meu estado é seletiva”, desabafa Antônia Silva.
Ela ressalta que o processo tem se arrastado, enquanto os denunciados permanecem livres e sem julgamento. “Ele [Elson] usou a arma do Estado, que é paga com os nossos impostos, para matar a minha filha. Eles andam por aí palitando os dentes como se nada tivesse acontecido, parece que têm certeza da impunidade”, afirma Antônia.
Para além da demora do julgamento, Antônia convive com constantes ameaças de morte e teme por sua vida. Ela já relatou que, desde o assassinato de sua filha, viaturas da polícia vigiam a frente de sua casa.
“Essa situação nunca parou. Hoje é com menos frequência que os carros rondam a minha casa, mas quando chega perto da data de alguma audiência, os carros passam com frequência e eu fico com medo. Eu tenho muito medo de sair, eu sou prisioneira há 9 anos na minha casa e o que eu posso fazer é orar para que esses assassinos passem bem longe de mim, porque eu não fiz nada. Eles mataram a minha filha e a Justiça fez vista grossa e não fez nada até hoje”, denunciou a mãe de Deusiane.
Em resposta à Amazônia Real, a defesa de Elson dos Santos Brito argumentou que o processo está próximo de chegar à fase de julgamento e que o militar deve ser absolvido, “no mínimo por insuficiência de provas”, disse.
Tribunal Internacional
Martha Gonzalez, advogada da família da sargenta Deusiane da Silva, revela contradições nos depoimentos prestados até agora em relação ao crime, principalmente sobre o armamento da vítima. Segundo ela, a arma que estava acautelada para a militar no dia do crime, e registrada no livro de carga, não é a mesma que foi apresentada na Delegacia de Homicídios e periciada como de Deusiane.
Gonzalez também negou as conclusões de um laudo apresentado pelos peritos da Polícia Civil em audiência de instrução, realizada no dia 29 de junho de 2022. “Os peritos disseram que não existe a possibilidade de ser homicídio. Eu questionei como eles podem afirmar isso, se a arma que estava com a Deusiane não foi periciada. Eles não souberam responder. Disseram que a perícia foi feita com base nas informações que foram repassadas para eles”, destacou a advogada.
A audiência de instrução ocorreu no formato híbrido (presencial e online), onde três peritos, que analisaram a cena do crime, esclareceram circunstâncias do assassinato de Deusiane. Os profissionais confirmaram que a cena do crime foi adulterada antes de a perícia chegar. O local chegou a ser lavado e duas mesas foram acrescentadas, indo contra o Código Penal Militar.
Ainda em 2022, a advogada chegou a pedir ao juiz Alcides Carvalho Vieira Filho, da Auditoria Militar, que uma nova perícia sobre o armamento de Deusiane fosse realizada, mas até agora nada foi feito. “Não foi realizada nova perícia. O delegado e o perito que estiveram no local na noite do crime, e que levaram a arma da Deusiane, também não foram ouvidos para explicar o motivo de um militar que nem estava de serviço ter apresentado outra arma para perícia como sendo dela. Até agora, todos mentiram nos seus depoimentos, pois afirmaram em audiência que estavam em um lugar na hora do crime, mas em depoimentos anteriores afirmaram estar em outro local”, disse.
Segundo a advogada, o processo está andando normalmente e o julgamento pode acontecer ainda em 2024, mas o caso de Deusiane precisa de uma nova investigação que apure a verdade dos fatos. Pelo artigo 142 da Constituição, só a Justiça Militar pode atuar em ocorrências do tipo.
“Particularmente, eu não acredito que um tribunal composto por militares vá condená-los, mesmo com as inúmeras provas que existem. Precisa mudar a legislação, para que no caso de feminicídio, os militares passem a ser julgados pelo tribunal do júri, por pessoas comuns”, revelou Gonzalez.
Martha Gonzalez pretende recorrer ao Tribunal Internacional Penal caso os réus sejam inocentados pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM). “Até hoje nada foi feito por causa da troca de armas. Até hoje a Dona Antônia vive apavorada e se escondendo com medo de ser assassinada. Eu pretendo recorrer até onde for possível, em qualquer lugar, em qualquer país!”, afirma ela.
Quando o caso viola os direitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o processo corre em todas instâncias da Justiça, mas não se tem êxito favorável à vítima, é possível abrir uma representação na Corte Internacional das Nações Unidas. A advogada também disse que se sente ameaçada: “quando estou me deslocando no carro me sinto perseguida por pessoas desconhecidas”, denunciou Gonzalez.
A reportagem da Amazônia Real solicitou ao TJ-AM um levantamento do número de julgamentos envolvendo casos de feminicídio em 2024. A assessoria do órgão informou que a 2.ª Vara do Tribunal do Júri julgará, no dia 6 de fevereiro, o feminicídio de Michele Nunes de Souza e tentativa de feminicídio contra Nadir Nunes de Souza. O crime ocorreu em 5 de setembro de 1998, no bairro Zumbi, zona Leste de Manaus, e o réu, José Francisco Rezende de Souza, permaneceu foragido até agosto de 2021, quando foi localizado, permitindo que fosse realizada a fase de audiência de instrução e proferida a sentença que mandou que o processo fosse julgado em Plenário.
Na mesma data, a 3ª. Vara deverá julgar outro processo que também trata de caso de feminicídio. A ação, no entanto, tramita em segredo de justiça. A 1.ª Vara do Tribunal do Júri ainda não disponibilizou a prévia da pauta de julgamentos para o semestre.
Apoio das feministas
Para lidar com o luto e a luta por justiça, Antônia da Silva disse que têm contato com as organizações como o Fórum Permanente das Mulheres de Manaus e o Levante Feminista contra o Feminicídio. “Eu vivo com esses carros que rondam a minha casa e sem a ajuda delas já poderiam ter me matado”, desabafa a mãe da sargenta.
Quando acontecem as audiências do caso de Deusiane, as mulheres do movimento feminista pedem por “Justiça por Deusiane” na parte de fora do Fórum Henoch Reis, localizado na zona sul de Manaus. As feministas Florismar Ferreira e Márcia Rodrigues, que fazem parte das organizações, dizem que o grupo de mulheres se concentra em frente ao fórum para dar apoio à mãe da vítima e cobrar justiça ao poder público.
Para Márcia Rodrigues, protestos como esses também são uma forma de apoiar aquelas que combatem a corrupção e o feminicídio. “Queremos exercer as nossas funções tranquilamente e denunciar o que tiver de errado sem sofrer por sermos mulheres”, diz Márcia, que integra o coletivo Mulheres Negras da Floresta Dandara.
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