Os 30 participantes do XVIII Congresso Internacional de Geografia, realizado em 1956 no Brasil, que escolheram a excursão 8, dentre as oferecidas pelos organizadores do encontro, optaram por visitar a Amazônia. A maioria dos excursionistas era da Europa. Entre representantes das superpotências, surpreendentemente os russos ganhavam dos americanos por 5 a 4. Examinado a partir de hoje, o roteiro impressiona pela duração da viagem, de 21 dias (três semanas completas), e pelo fato de que a predominância do meio de transporte era pelo rio, em um navio que se transformou em “hotel fluvial”.
Sem pressa, conversando e observando a paisagem, os excursionistas fizeram algo que, hoje, dificilmente seria apreciado.
O eixo da excursão foi a calha do rio Amazonas. Os geógrafos e professores de geografia desceram nas principais cidades existentes entre Belém e Manaus, penetrando em “terra-firme” (como escreve Lúcio de Castro Soares, autor do texto de referência) até onde se implantavam atividades humanas pioneiras.
Um salto muito além
Algumas, em ligação direta e franca com uma base já estabelecida no curso do próprio rio, como indústrias de beneficiamento de juta e serrarias. Outras que faziam a troca da base econômica do extrativismo, que era vegetal, e começava a se tornar mineral, com a exploração das jazidas de manganês do Amapá, a primeira de um ciclo que já dura quase 70 anos e tem como principal referência a maior jazida de alto teor de minério de ferro do planeta.
Um pressuposto do roteiro era de que essas novas atividades promoveriam um salto histórico, mas não tão extenso que acabasse resultando num vácuo, intransponível pelos nativos, além de sua capacidade de compreensão e de domínio intelectual. Tradição e modernidade, conservação e inovação haveriam de conviver. Os cientistas veriam os danos causados pela exploração intensa de um solo fraco. Propunham correções e ajustes, não a ampliação da ofensiva dessa destrutiva agricultura migratória – como, infelizmente, acabaria ocorrendo.
Seria pedagógica a repetição desse roteiro. Quase setenta anos depois, o eixo da colonização deixou de ser fluvial, tornando-se rodoviário, multiplicando o alcance daquelas pequenas vias de penetração limitada que os excursionistas puderam ver. Tudo o que se fazia para incrementar e racionalizar a exploração das “terras-pretas” e das várzeas foi abandonado, ou porque não deu certo, ou porque não teve continuidade.
No Maicuru, na várzea de Monte Alegre, no Pará, os canais através dos quais os sedimentos em suspensão do rio Amazonas seriam desviados do leito natural por canais artificiais para campos de deposição, cuja colmatagem resultaria no solo mais rico do planeta, acabaram erodidos pelas próprias águas do Amazonas, dando origem a uma baía, quase um estuário. A força da natureza atrapalhou a engenharia do homem.
Já na várzea do Guamá, maios próxima de Belém, os experimentos do Instituto Agronômico do Norte (hoje Embrapa, depois de ter sido Ipean) ficaram nas prateleiras porque procura-se não mais a margem do rio, mas a beira da estrada.
O ataque à terra-firme
Através dela houve um caótico avanço sobre a terra-firme, vista – pelo prisma da excursão – como um lugar a exigir uma aproximação lenta e atenta para não ser profanada, destruída. É pouco provável que qualquer dos geógrafos, dentre os quais estava gente de fama, como o francês Francis Ruellan, imaginasse que nas sete décadas seguintes os agentes da ocupação da Amazônia viessem a desmatar 500 mil quilômetros quadrados de floresta nativa, justamente nas áreas mais altas, de intensa laterização, como puderam verificar em todas as suas viagens por terra. Para todos, o sentido da penetração seria a partir das várzeas, avançando cautelosamente para as “terras ignotas” do interior, n&at ilde;o um salto que deixou para trás a história, a geografia e a inteligência, como ocorreria a partir da década de 1960.
Como lixo deixado displicentemente, o excursionista dos nossos dias poderá ver as ruínas das indústrias que tentaram avançar no beneficiamento de matéria-prima local (ou aculturada na região, como a juta), e o descompasso entre o horizonte mental e de expectativas da história regional e a régua-e-compasso impostos pelo “grande projeto”, que veio de fora, virado para fora.
A futura hidrelétrica do Paredão, no Amapá, por exemplo, foi incluída no roteiro de 1956 por ser uma “importante usina hidrelétrica”, que então começava a ser construída. No entanto, toda a sua capacidade de geração representaria apenas 10% da potência de uma só das 23 máquinas instaladas na hidrelétrica de Tucuruí, enormes turbinas de 330 mil kw cada. O paralelismo permite estabelecer uma ordem de grandeza entre o que seria a evolução por dentro da Amazônia e o que significou sua ocupação a partir de fora, num modelo tipicamente colonial.
O roteiro é um guia da Amazônia que poderia ter sido, se a região tivesse continuado a dispor de algum grau de autonomia ou evoluído num ritmo menos intenso. Ao contrário, porém, ela se tornou dependente, em seus esquemas vitais, do mundo exterior, que impõe uma marcação acelerada das atividades humanas. Para os participantes da excursão, acompanhar a excursão pode ter tido um efeito positivo: mostrar como a geografia perdeu a identidade com seu campo específico de estudo, o homem e a paisagem, ao procurar enriquecimentos na sociologia, na política ou na antropologia.
A interdisciplinaridade permitiu o adensamento de conteúdo humano de uma ciência que se tornava insípida e asséptica enquanto mera reprodução da natureza, na modelagem do imperialismo que conquistou a África e a Ásia. Mas, em exagero reducionista, empobreceu a perspectiva propriamente geográfica dos seus praticantes, transformando sua ciência numa extensão daquelas que deveriam complementá-la.
A Amazônia, particularmente, ganharia se os geógrafos voltassem a cuidar melhor das estruturas físicas do globo, não como elementos estáticos ou isolados, mas como uma dimensão própria do nosso mundo. Todos podemos ganhar com a leitura do roteiro preparado por Lúcio de Castro Soares, ainda mais se a partir dele uma excursão tão inteligente fizesse o visitante encarar a verdadeira Amazônia.
No fecho do seu livro, Soares apresentou uma “breve notícia da excursão”, que reproduzirei no próximo capítulo.
A imagem que abre este artigo mostra agricultores a espera de transporte, vendo-se o produto ensacado em Monte Alegre (PA) nos anos 50. Acervo dos trabalhos geográficos de campo do IBGE. Autoria de Jablonsky, Tibor; Soares, Lúcio de Castro.
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Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:
* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.A
* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.
* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.
* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.
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